“Eles não vão atrás disso, não”. A frustração de quem procura uma delegacia policial para tentar resolver determinados tipos de problemas é uma realidade nacional. Os pequenos roubos e furtos, por exemplo, têm um índice de resolutividade que beira o desespero. O cidadão/contribuinte sai da delegacia sem um mínimo de esperança, e as centenas (milhares!) de ditos ‘pequenos crimes’ vão se acumulando Brasil afora.
Quem lê esse parágrafo acima sente até ‘raiva’ da polícia. É natural. Nós, pagadores de [altos] impostos, queremos e merecemos um serviço público de qualidade. Mas tem um lado quase invisível dessa moeda que a sociedade também não faz muito esforço para enxergar.
Se o prezado leitor(a) tivesse a oportunidade de acompanhar o dia-a-dia na Polícia Civil, sentiria na pele a avalanche de ‘pequenos atritos’ que acabam prejudicando o andamento dos casos mais graves a serem solucionados. É como um hospital destinado ao atendimento de urgência – ou seja, casos graves –, porém pressionado por um bocado de gente se queixando de dor de barriga, dor de cabeça, dor na perna. Alguém vai ter que esperar...
Outro dia, um colega do setor de registro de ocorrências adoeceu, e a falta de efetivo policial me fez assumir o seu posto. Eu estava analisando imagens de um roubo cometido em nossa área, e ao mesmo tempo atendendo as pessoas que chegavam com suas queixas para fazer o velho e conhecido ‘B.O’.
– Bom dia, eu vim registrar um boletim.
– Pois não. É sobre o quê, moça?
– Eu estava fazendo compras e fui pegar uma garrafa de água sanitária. A garrafa estava aberta e derramou por cima de mim, manchando minha calça, que inclusive comprei ontem.
Eu tentei explicar a ela que isso não é caso de polícia, mas ela disse que foi orientada por uma advogada amiga a registar o bendito B.O. na delegacia. Por educação, eu deixei a análise dos vídeos de um crime de verdade e dediquei cinco minutos para digitar em um papel que “Fulana de tal relata que foi até o supermercado tal... bla bla bla... e teve sua calça manchada ao tentar pegar uma garrafa de água sanitária que estava aberta”. Pura perda de tempo para um policial.
E assim aconteceu com o funcionário de uma empresa que foi dar partida na moto, e a chave quebrou dentro da ignição; o motorista do ônibus que fez uma manobra quase perfeita, não fosse o pequeno arranhão de dois riscos no para-choque do veículo; o namorado traído não pelo surgimento de ‘outro’ na vida do casal, mas pelos R$ 1.500,00 que ele pagou no aparelho celular da amada. Uma semana após ganhar o presente, ela acabou o namoro. E o pobre do cidadão queria ‘resolver’ na delegacia.
Numa delegacia de polícia, você atende pessoas com problemas os mais diversos, e boa parte deles nem deveria ser resolvida ali. Isso resulta em um acúmulo de trabalho, prejudicando inclusive a investigação dos casos mais sérios.
O Ministério da Justiça resume isso com o trecho abaixo:
“Existe uma enorme seletividade dos casos a serem investigados. Tal seletividade deriva da necessidade que os policiais têm de administrar o volume de trabalho que a população demanda. A existência da seletividade no sistema de justiça criminal diz respeito à discricionariedade que delegados, juízes e promotores possuem. Sem esta discricionariedade, não seria possível administrar o trabalho de uma delegacia de polícia”.
É triste, mas é verdade. E a culpa não é da polícia.
PERFIL
Saulo Nunes é formado em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ingressou via concurso público no sistema penitenciário do estado em 2009, onde permaneceu como policial penal até o ano de 2015. A partir daí, também após aprovação em concurso, passou a trabalhar como Investigador da Polícia Civil. É autor de Monte Santo: A casa de detenção de Campina Grande