Se tem uma coisa que eu gosto – embora maltrate minha saúde mental, às vezes – é ler os projetos de lei da Câmara e do Senado Federal, voltados para políticas de segurança pública. Enquanto incansável pesquisador e apaixonado pelo tema, as ideias dos nossos parlamentares para melhorar o enfrentamento à violência não poderiam estar de fora das minhas consultas. Aliás, prometo que irei sempre tocar nesse assunto por aqui.
Para começarmos a brincadeira, apresento-vos o Projeto de Lei 5554/2020, que cria um cadastro nacional de pessoas condenadas por crimes de violência doméstica e feminicídio. De acordo com a autora da proposta, deputada Rejane Dias (PT/PI), o objetivo é “criar mecanismos para inibir e prevenir ações violentas contra as mulheres e por outro lado atender a demanda por um sistema de informações confiável que contribua para o aperfeiçoamento do sistema de justiça e órgãos de segurança pública”.
Esse cadastro nacional deve catalogar, no mínimo, as seguintes informações sobre o agente criminoso:
I – Fotografia;
II – Exame datiloscópico;
III – Perfil genético;
IV – Nível de escolaridade;
V – Renda salarial mensal;
VI – Faixa etária;
VII – Profissão;
VIII – Local de residência;
IX – Cor e raça
Eu fazia!
Não vou me debruçar sobre as intenções desse projeto de lei, porque acredito ser das melhores (quero acreditar, pelo menos). Mas não posso deixar de fazer alguns apontamentos diante das quatro laudas que li, no link que leva à proposta da deputada.
Quando eu era lotado na Delegacia de Homicídios de Campina Grande e, quase que diariamente, acionado junto com meus colegas para o cenário de mais um corpo – feminino ou masculino – sem vida no chão, nós anotávamos o máximo de informações possível sobre a vítima.
Quando conseguíamos identificar e prender o(a) agente criminoso, idem. A fotografia era a primeira providência. Em seguida, preenchíamos um relatório contendo nome do suspeito; nome dos pais; se tinha filhos e quantos; endereço; telefone; grau de escolaridade; profissão.
Se a pessoa presa já possuísse documentos pessoais, anexávamos cópias ao Inquérito Policial. Caso contrário, nós providenciávamos o Exame Datiloscópico, que também seguia junto com o Inquérito para os gabinetes da justiça.
Nos nossos relatórios, incluíamos também as nossas ‘impressões pessoais’ acerca do crime, procedimento muito comum na atividade de Investigação. Opiniões que obviamente não devem servir como prova, porém muitas vezes ajudam a clarear o que ainda se apresenta como um breu total.
Então, quando percorri quatro laudas à procura de algo ‘novo’ que pudesse “criar mecanismos para inibir e prevenir ações violentas contra as mulheres”, confesso que não encontrei no referido projeto de lei. Ao contrário, constatei que pelo menos 70% das exigências da proposta parlamentar em tela já eram cumpridos por mim e meus colegas, entre os anos de 2015 e 2017, numa singela delegacia especializada no interior da Paraíba. E aposto que hoje eles fazem mais e melhor.
Esse ‘banco de dados’ que nasce de um corpo sem vida no chão sempre foi compartilhado com a Secretaria de Segurança Pública e o Poder Judiciário. Resisto muito em acreditar que essas informações não cheguem ao Ministério da Justiça, como forma de contribuir para o ‘raio x’ da violência nacional.
Para atender por inteiro a proposta da parlamentar, basta que o poder judiciário em seus respectivos estados informe a uma ‘central reguladora’ quem foi condenado por violência doméstica e/ou feminicídio, ao longo do ano. Também acho pouco provável que essa estatística não chegue a um órgão nacional.
Eis o descaso com a nossa Segurança Pública: ou o Governo Federal joga pelo ralo o amontoado de informações/detalhes que versam sobre vítimas e assassinos (de homens ou mulheres) em todo o Brasil, ou estamos pagando [caro!] o salário de um deputado(a) federal para propor medidas que já existem na prática e há um bom tempo.
O leitor que faça a sua aposta.
PERFIL
Saulo Nunes é formado em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ingressou via concurso público no sistema penitenciário do estado em 2009, onde permaneceu como policial penal até o ano de 2015. A partir daí, também após aprovação em concurso, passou a trabalhar como Investigador da Polícia Civil. É autor de Monte Santo: A casa de detenção de Campina Grande