Saulo Nunes: "E se não fosse o bairro da Glória?"


O ano era 2006, e eu estagiava na Secretaria de Comunicação do estado. A pauta do dia foi fazer a cobertura da transferência dos moradores da então [conhecida] ‘Favela da Cachoeira’, na zona leste de Campina Grande, para o novíssimo Bairro da Glória. Passaram-se 15 anos, e eu não imaginava o quanto aquela mudança coletiva de endereço me ajudaria – ainda que indiretamente – nos dias de hoje.

Estamos falando de uma favela que crescia em formato de ‘morro às avessas’. Enquanto os aglomerados de residências pobres se amontoam do nível do chão para cima, como se vê no Rio de Janeiro, por exemplo, a versão campinense dessa geografia perigosa exibia o contrário: as casas desciam ladeiras, como que acompanhando o ‘cânion’ cavado pela cachoeira [de esgoto] que batizou o lugar.

Eu nunca conheci aquela área habitada. Quando estive ali há 15 anos, boa parte dos moradores já havia deixado os casebres para ocupar a nova moradia, no recém-construído Bairro da Glória. Uma parte das famílias ainda carregava o que podia (colchões, utensílios, pequenos objetos, etc.), e o maquinário do governo derrubava os domicílios condenados à demolição. De fato, para a contemporaneidade, aquilo não era lugar de ser humano morar.

Nem de trabalhar!

Os colegas policiais que têm mais tempo de profissão nos desenham melhor como era o cenário por ali. E para resumir essa parte, eu diria que “se aquele monstro (no bom sentido) tivesse crescido, a violência seguia na mesma proporção. Ou mais”.

Peço CALMA a quem, porventura, interprete essa fala como “pobreza é sinônimo de criminalidade e violência”. Não é bem disso. A grande maioria das pessoas que saíram da ‘Cachoeira’ para o Bairro da Glória continua pobre. E quem era ‘bandido’ antes de 2006 dificilmente mudou de rumo só por causa de um novo lar.

O fato é que o advento do novo bairro vai muito além de dignidade humana àquelas 650 famílias beneficiadas 15 anos atrás. Carteiros e profissionais do Programa Saúde da Família, por exemplo, com toda certeza também ‘lucraram’ com essa história.

E a Polícia?

Pobreza não é um fiel sinônimo de violência. Mas quando o desajuste social de um lugar vai ao extremo, o ambiente favorece a minoritária parcela pobre que se utiliza de meios cruéis para manter um “poder paralelo”. E se a polícia não dá as caras, esse monstro cresce (vide Rio de Janeiro...).

Mas para a polícia cumprir seu papel como desejamos, é preciso que ela tenha acesso fácil aos possíveis esconderijos dos criminosos. Uma coisa é fazer patrulhamento, levantamento de informações ou entregar uma simples intimação nos labirintos incertos da antiga Favela da Cachoeira; outra coisa é cumprir a mesma tarefa nas ruas pavimentadas e bem definidas do Bairro da Glória, hoje.

Quanto mais ‘organizado’ for um bairro, melhor será para os serviços públicos atuarem nele. Inclusive, a Segurança Pública. Na verdade, as polícias não têm medo de entrar em buraco nenhum. O receio é tão somente ser ‘obrigado’ a matar pessoas inocentes – usadas como ‘escudo’ pela parcela marginal (vide Rio de Janeiro...) – e arcar com todos os prejuízos possíveis que um alvo errado pode causar. Em outras palavras, “erros frutos de outros erros”. Mas no fim, quem paga a conta é o dono do dedo que apertou o gatilho.

E se não fosse o Bairro da Glória?

Campina Grande ainda é uma cidade relativamente abençoada pela existência de poucas favelas. As que existem são pequenas para o contexto aqui discutido. As polícias por aqui ainda entram em todos os recantos do município com certa ‘facilidade’ (isso é relativo, claro).

Mas se aquele monstro em forma de ‘cânion’ não tivesse sido destruído, hoje – 15 anos depois – é muito provável que o lugar serviria de abrigo para muito mais criminosos faccionados, fortemente armados, utilizando a geografia como aliada e o povo como escudo.

Vide Rio de Janeiro.


PERFIL

Saulo Nunes é formado em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ingressou via concurso público no sistema penitenciário do estado em 2009, onde permaneceu como policial penal até o ano de 2015. A partir daí, também após aprovação em concurso, passou a trabalhar como Investigador da Polícia Civil. É autor de Monte Santo: A casa de detenção de Campina Grande

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