Por Saulo Nunes*
O cidadão chegou ofegante à Delegacia Distrital onde trabalhei, dizendo que estava monitorando o ‘paradeiro’ do seu telefone celular que havia sido roubado. De posse de um segundo aparelho, apontava na tela uma luz piscando que indicava o local exato onde estaria o primeiro bem roubado.
Eu tentei acalmá-lo e, ao mesmo tempo, dizer que “não é bem assim”. Ou seja, aquela bolinha piscando não seria suficiente para deslocar uma viatura ao setor, entrar na casa apontada [como o cidadão queria] e recuperar seu telefone. O cidadão refutou, e eu insisti nas minhas explicações. Mas ele foi tão persistente em sua teimosia, que eu decidi mostrar na prática o que tentava esclarecer ‘de boca’.
Chamei um colega policial, pus o cidadão na viatura e fomos até a rua onde a bolinha piscante dizia haver um telefone celular roubado. Ao desembarcarmos, a primeira frustração do cliente: o tal rastreamento não apontava a casa exata onde estaria o aparelho que procurávamos. Uma sombra azul cobria o espaço de três residências, e o camarada soltou uma fala visivelmente embaraçada: “Deve tá numa dessas três”.
Chamamos na primeira, e surgia uma mulher com uma vassoura na mão. Ela disse que estava sozinha em casa, que seu marido estava trabalhando e que, se quiséssemos, poderíamos fazer uma ‘revista’ em sua residência. A mulher expressava tanta sinceridade, que até o cidadão roubado descartou nossa ‘invasão’ ali.
- Quem mora aqui vizinho? Perguntei.
- É um casal também, mas os dois trabalham e só chegam à noite - respondeu a mulher.
Olhei de banda para o cidadão, como que aguardando alguma ‘determinação’ a ser cumprida. Ele só fazia experimentar, com ar de amargura, o que nós, policiais, enfrentamos todos os dias.
- E naquela outra casa, senhora? - questionei, esticando o braço à direita.
- Ali moram um casal e três filhos. Mas não sei se tem gente em casa agora - respondeu.
Agradecemos a gentileza da mulher e fomos ‘bater palmas’ na terceira alternativa que a bolinha azul piscante nos oferecia. Depois de algum tempo chamando, nos aparecem dois adolescentes.
- Bom dia. Vocês moram aí? - Perguntei.
- Sim.
- Quantos anos vocês têm?
- Eu tenho 16 e ele tem 14.
Olhei de lado para o cidadão de novo...
- O pai ou a mãe de vocês estão em casa?
- Não, estão trabalhando.
Olhei de banda de novo....
- Não tem ninguém maior de idade em casa? - Insisti.
- Não.
Olhei de novo...
Antes que o cidadão sugerisse a ideia de entrarmos “na tora” naquela casa, eu fui logo informando que a polícia não pode entrar em residência onde estejam apenas pessoas menores de idade. E ainda mais naqueles circunstâncias que não nos apontavam provas concretas de um crime.
- E o que a gente faz agora? - perguntou o cliente teimoso.
- A gente faz aquilo que eu estava tentando explicar a você, na delegacia. Você registra o boletim de ocorrência; as pessoas responsáveis pela casa serão intimadas a comparecer à delegacia; e, se for o caso, a Polícia Civil solicita à justiça um mandado de busca para saber se o seu telefone ainda está aí, se é que está mesmo.
- Mas isso custa quanto tempo?
- Bom... Graças à demanda de crimes que a sociedade deposita nas costas da polícia e da justiça todos os dias, isso deve demorar umas duas semanas, por aí.
- Ahh, daqui até lá meu telefone num vai tá aí mais não! - reclamou.
E eu fiquei olhando nos olhos dele.
O que o cidadão queria era uma polícia que todo mundo diz rechaçar. Uma polícia que invada casas sem mandados judiciais, à procura de objetos roubados e supostamente escondidos ali. Uma polícia que ignore a burocracia das leis, pois o mais importante é “resolver o meu problema”.
Voltamos à delegacia. Ele não quis nem registar mais o B.O.
E eu senti a sensação espiritual de um monge tibetano, ao mostrar a um cidadão, em aula prática, um pouco do que é ser policial numa sociedade como a do Brasil.
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Saulo Nunes é formado em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Ingressou via concurso público no sistema penitenciário do estado em 2009, onde permaneceu como policial penal até o ano de 2015. A partir daí, também após aprovação em concurso, passou a trabalhar como Investigador da Polícia Civil. É autor de Monte Santo: A casa de detenção de Campina Grande