A crônica de Rodrigo Rabello: "O revisionismo histórico do imitador de focas"


É certo que, entre tantas coisas que passam longe da cultura brasileira, a defesa da meritocracia é, incontestavelmente, uma delas.

Em simples definição do dicionário Oxford, a meritocracia pode ser definida como o “predomínio numa sociedade, organização, grupo, ocupação etc. daqueles que têm mais méritos (os mais trabalhadores, mais dedicados, mais bem dotados intelectualmente etc.)”.

Na atualidade, por aqui pela outrora denominada Terra de Vera Cruz, falar em mérito, importa no automático “cancelamento” do indivíduo e naquele rótulo tão preciso que a cultura progressista tanto gosta de utilizar e que já utilizei em texto anterior: fascista!

Mas, por amor ao debate e à verdade dos fatos, é digno frisar que essa conversa de mérito, de fato, nunca fez parte da cultura nacional. O Brasil nasceu como uma colônia de exploração, tornou-se independente e se desenvolveu em pilares aristocráticos que existem até os dias de hoje. Tivemos uma Proclamação da República que, desde os primórdios, se baseou em princípios nada republicanos (o que também se arrasta até hoje) e permanecemos fingindo que todos são iguais perante a lei, sabendo que uns são mais iguais que os outros.

Na contemporaneidade, surgem as ações afirmativas, fulcradas na isonomia material, que, a despeito dos argumentos técnico-científicos e com as vênias devidas aos defensores, somente é utilizada como um simulacro fajuto desta cultura profundamente aristocrática tão enraizada em nossa tradição.

Dito isto, poderíamos invocar as memoráveis palavras utilizadas pelo icônico Deputado Federal (e palhaço de carreira) Tiririca: pior do que está, não fica. 

Mas, acreditem, já ficou.

A contemporaneidade nos trouxe as redes sociais, um impensável novo fenômeno cultural que revolucionou radicalmente a forma como nos relacionamos uns com os outros e com a sociedade em que estamos inseridos.

O que outrora eram tomos de livros, teses científicas, artigos de profundo rigor técnico e inegável ineditismo teórico foi imediatamente substituído pela criação de conteúdo em vídeos de não mais que dez minutos no YouTube, postagens no twitter ou cards no Instagram. A relevância da pesquisa científica? Foi substituída pelo engajamento e alcance das contas dos usuários, número de seguidores e a quantidade de curtidas e views no perfil do dito cujo.

Invoco, aqui, as ideias do falecido filósofo inglês Roger Scruton: a “Arte de verdade é uma obra de amor. Arte falsa é uma obra do engano”. E eis que, assim como, na arte, deixamos de lado a beleza das obras de amor, dando atenção aos enganos da arte contemporânea. No campo do conhecimento, deixamos de lado a ciência como busca da verdade, em detrimento da busca do engajamento.

Foram dois os fatos que me levaram à reflexão de hoje. O primeiro, a notícia de que o YouTuber Felipe Neto representou o Brasil, nesta última terça-feira, na conferência “Internet for Trust”, realizada pela UNESCO, com o objetivo de falar sobre “fake news e direitos humanos na esfera digital”. O segundo, foi a criação de um grupo de trabalho, no âmbito do atual governo federal, para combater “o discurso de ódio nas redes sociais”. Grupo este que contará com a presença do mesmo ilustríssimo influencer (para ser moderninho) Felipe Neto e da (nada) moderada política brasileira Manuela D’Ávila, do (nada) democrático Partido Comunista do Brasil.

O evento ocorrido e a criação do comitê governamental têm a única e exclusiva finalidade de promover pautas de censura e regulamentação das redes sociais.

O que é verdadeiramente assustador, diga-se. Preciso registrar que sou veementemente contra qualquer tipo de censura e regulamentação das redes sociais. Mesmo sem existir normatização específica, o atual dono do Twitter, Elon Musk, divulgou como a própria regulamentação interna, descarada e antiética promovida pela rede influenciou nas eleições americanas e brasileiras. Mas, se é uma proposta de uma Governo com tendências de amplo controle estatal, o mínimo de decência que se poderia esperar seria discutir seriamente as tais questões como “discurso do ódio” e “fake news”. Já contamos como inúmeros pesquisadores de altíssima qualidade sobre a temática no Brasil e, a despeito da minha frontal discordância com relação à proposta, penso que poder-se-ia existir um mínimo de debate qualificado, fundado na constitucionalidade de eventual regulamentação, definindo critérios objetivos para definição de quais seriam as transgressões passíveis de contenção.

Contudo, mais uma vez, optamos pelo anti-mérito. Desta vez o anti-mérito da aristocracia progressista. Quem tem voz é quem faz parte do time e quem se traja de vermelho. Não se escolhe por competência, se escolhe por filiação partidária, identitarismo e, pior, quantidade de seguidores nas redes sociais. Aos discordantes, a guilhotina e a censura. A história se repete.

Recentemente, parlamentares que não seguiam a cartilha do discurso único imposto pela grande mídia e pela narrativa progressista tiveram contas de redes sociais bloqueadas. Um psiquiatra que tem o maior serviço de desenvolvimento pessoal da América Latina e realiza postagens diárias de cunho religioso, ajudando milhares de pessoas na era das doenças psiquiátricas, teve suas redes sociais bloqueadas. Portais e canais de produção de conteúdo que não integram a mídia mainstream foram censurados (afinal, quem não lembra da flagrantemente inconstitucional censura prévia do canal Brasil Paralelo e do célebre julgamento pelo Tribunal Superior Eleitoral, quando a Eminente Ministra Carmén Lúcia, em termos populares, praticamente disse: tem cheiro de, tem gosto de, tem aparência de, mas vamos fingir que não é). Agora teremos, como representante da “democracia” e defensor dos direitos humanos, um jovem que, nas últimas eleições, explicitamente pregou e defendeu que artistas contrariassem a legislação eleitoral, se oferecendo, inclusive, a pagar as multas eventualmente impostas (certo Iluministro disse, certa feita, que eleições não se ganham, se tomam, correto?). Um iluminado combatente de discurso do ódio que, em postagem realizada em seu Twitter no dia 05 de Maio de 2021, acerca do ex-Presidente da República, assim se referiu (desde já, peço desculpas aos mais puritanos): “desgraçado, maldito, genocida, filho da puta, corno, demônio, puto, vagabundo, podre, tosco, burro, ladrão, covarde, lixo, bandido, mentiroso, ASSASSINO”. Fecho as aspas sentindo o queimar da bílis e o puro suco de ódio nas palavras do neopacifista, ex-imitador de focas e portador de uma opinião sobre tudo. 

Isso não é somente vergonhoso, mas, principalmente, digno das mais profundas angústias e medos daqueles que, verdadeiramente, defendem a liberdade própria dos regimes republicanos e democráticos.

Enquanto a grande mídia descredibilizada e sua militância de redação aplaudem e rezam para qualquer coisa que acreditem, dentro de seu neopaganismo habitual, para que a censura se concretize, as liberdades vão sendo massacradas aos nossos olhos nus. Uma por uma. E ai de quem se posicione contra.

George Orwell, na brilhante e premonitória obra “1984”, foi um vidente evidente ao prever a existência do “Ministério da Verdade”, órgão governamental responsável pela propaganda e revisionismo histórico do governo da “Pista de Pouso Número 1”, situado no que seria a outrora “Grã-Bretanha”. 

Sem redes sociais livres ou regulamentadas pela visão rubro monocromática do partido extremista no poder, estamos sujeitos a um Ministério da Verdade pós-moderno, composto pelo Poder Executivo alinhado com a cúpula do Poder Judiciário e a grande mídia escancaradamente militante. Só nos resta aguardar a tipificação do crime de pensamento (já hodiernamente punido pelo Supremo Tribunal Federal).

Findo estas palavras me utilizando do jargão sempre utilizado pelo dileto e cordial amigo advogado, Dr. João Ricardo Coelho, ferrenho crítico dos privilégios típicos do sistema carguista brasileiro: “Definitivamente, somos um País de castas”. 

Rodrigo Rabello

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Advogado, professor, colunista do Jornal do Meio-Dia da Campina FM


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