"Das desilusões jusamorosas do Anita Cabral" - Por Rodrigo Rabello


Rodrigo Rabello

Caros e caríssimas ouvintes, neste primeiro dia, me permitam fazer uma brevíssima apresentação deste que vos dirige a palavra.

Por onde ando, Brasil afora, me defino orgulhosamente como Campina Grandense da Gema. Sim, você não entendeu errado. Embora não esteja aqui para falar de futebol, assim me denomino por uma questão futebolística, afinal, como torcedor apaixonado e membro da linhagem nobre do alvinegro do São José, o Treze Futebol Clube, não poderia fazê-lo de forma diferente.

Brincadeiras à parte, sou, como tantos nascidos e adotados por esta cidade, um inveterado apaixonado por esta terra Campinae. Nossa história, nossa cultura, o espírito guerreiro que só aqueles que bebem das águas do açude Epitácio Pessoa, o popularmente conhecido Açude de Boqueirão, conhecem. E esta aura cosmopolita que orbita os Alpes da Borborema e que somente se pode encontrar em grandes metrópoles equivalentes (um pouco mais modestas, é verdade), como Londres, Paris, Nova York, São Paulo, entre outras.

Sou advogado por essência, escolha e sacerdócio. Professor por vocação e sanguinidade. 

Me graduei em Direito na Universidade Estadual da Paraíba, após anos muito bem vividos de estudo e militância política estudantil no prédio que outrora abrigava o Colégio Anita Cabral.

Bacharel em Direito, segui minha vida acadêmica no curso de mestrado em Direito Constitucional na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E em alguns anos de muitas estradas percorridas, perfazendo os caminhos da vida laboral, acumulei algumas experiências profissionais, também, em nossa capital e na capital pernambucana.

Hoje, devidamente reinstalado no Centro de Irradiação Cósmica do Universo, nossa Roma pós-moderna. Jogado aos braços da amada Rainha da Borborema, não perdendo, entretanto, o espírito de cidadão do mundo que nos preenche, enquanto viventes desta capital mundial, continuo a exercer minhas atribuições profissionais aqui e Brasil afora.

Feito este breve relato curricular, enquanto escrevo estas curtas linhas, muito saudosamente me recordo do velho Anita Cabral, dos tempos de entusiasmada juventude e de apaixonada crença às tantas utopias que as letras jurídicas me apresentaram.

Não esqueço quando, na biblioteca do Centro de Ciências Jurídicas, o Professor Valfredo Aguiar, amigo que, a despeito das divergências de natureza político-ideológica, nutro profunda estima, afeto e carinho, me apresentara uma obra jurídica que me encantou e me norteou, enquanto tentativa de pensante do Direito Constitucional, por tanto tempo.

À época, o autor, advogado constitucionalista (que sonho de carreira para um jovem estudante pretendente, à época, a ingressar em um mestrado de Direito Constitucional?) e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, defendia com verdadeira paixão e uma escrita notória e naturalmente envolvente (beirando o nível de um grande romance da literatura brasileira) uma releitura do direito constitucional brasileiro que, a despeito de tão jovem, encontrava-se já tão defasado (por causa do que conhecemos, hoje, como velha política – e ainda tão presente na nossa sôfrega democracia).

"Chega de ação. Queremos promessas". Assim iniciava um dos capítulos daquela obra do, então, advogado. Em narrativa quase ficcional, relatava uma experiência pessoal em uma viagem ao leste da Alemanha e, partindo do que indicou ser uma pintura em um muro, iniciava sua literária dissertação acerca de um novel movimento constitucional iniciado na Europa com o fim da Segunda Guerra Mundial e que, a despeito de ter se refletido na elaboração da Constituição brasileira de 1988, ainda não se fazia vislumbrar de forma veemente na cultura jurídica nacional.

E o que poderia um jovem jurista, sempre radicalmente idealista, fazer, senão se apaixonar por aquela defesa tão abstratamente intransigente da ordem constitucional e da supremacia da Constituição? Como não se encantar por uma defesa técnica, tão maravilhosamente escrita, propondo a reafirmação da supremacia da Constituição, tão atacada pelos poderes constituídos?

Foi amor à primeira vista e paixão inconsequente. Aquelas letras permearam meu trabalho de conclusão de curso, meu projeto e dissertação de mestrado, e, por muito tempo, estiveram como meu livro de cabeceira.

Mas a realidade, caros e caríssimas, é que nem sempre a vida imita a arte.

Alguns anos passados, aquele brilhante advogado (cujas sustentações orais que realizava no Supremo Tribunal Federal eu assistia na TV Justiça com os olhos brilhando igual a uma criança assistindo seu desenho preferido) foi nomeado ministro daquele mesmo Tribunal e, com sua nomeação, suas ideias, outrora sedutoras no papel, tomaram campo, de forma bem mais intensa do que se esperava, na prática jurisdicional brasileira.

Não é obra do destino que, juntamente com este novo direito constitucional brasileiro encampado de forma avassaladora pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, tenha surgido, igual modo, o que aparentemente vem se convencionando chamar de “juristocracia brasileira”. Regime político inédito na história das nações, carente de maiores estudos teórico-científicos, embora a experimentação empírica, até o momento, não esteja se mostrando aprazível.

Naturalmente, em tempos de profunda polarização política (completamente acéfala) das massas, há quem aplauda e há quem condene com firmeza posturas como a que trago em breve debate. Não estamos aqui para isso. No mundo do Direito, notadamente do Direito Constitucional, não há espaço para torcidas. Não estamos falando do Clássico dos Maiorais. 

Para utilizar o jargão tão largamente utilizado nos últimos anos: estamos falando de ciência.

A Constituição existe, em termos de fácil compreensão, para criar o Estado, definir seus limites de atuação, juntamente com suas normas de organização e traçar as bases do ordenamento jurídico. 

Em um modelo constitucional formal em que se adota o sistema tripartite de separação dos poderes, como ocorre em nossa Constituição vigente, as três funções do poder existentes (executivo, legislativo, judiciário) encontram-se em igual nível hierárquico, sendo independentes e harmônicas entre si. Existindo, tão somente, a Constituição e o povo que a legitima acima de suas estruturas.

Repito, a Constituição existe como expressão do poder do povo e esta mesma Constituição está acima dos poderes. Não ao lado. Não de forma acessória. Não como instrumento de mera consulta. A Constituição é detentora de status de supremacia dentro da ordem constituída. Eivando, pois, de nulidade, qualquer ato que a contrarie.

Continuo: é certo que, a despeito da responsabilidade compartilhada de todos os poderes (ou funções do poder) de protegerem a Constituição, a mesma Constituição lega ao Supremo Tribunal Federal a competência precípua de sua tutela. O Supremo é, como nós constitucionalistas gostamos de repetir, o guardião da Constituição.

Mas o que acontece quando o guardião avoca para si poderes que não lhe são conferidos? O que ocorre quando o guardião, em profunda escoliose interpretativa, desdiz o que diz a lei maior? O que acontece quando o guardião se arvora de uma legitimidade de representação que não lhe pertence? Afinal, nunca votamos em Ministros do Supremo Tribunal Federal. O que esperar de uma decisão despida de tecnicismo e recheada das vontades de quem decide? O que acontece quando o Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que estabelece o texto constitucional, decide calar um parlamentar, verdadeiro representante eleito do povo? Ou condicionar políticas públicas cuja competência constitucional para concretização reside no poder executivo?

Em tempos em que muito se fala (como se fosse um mantra salvador repetido por zumbis de um filme trash dos anos 80) de um conceito lato, impreciso e inexato de Democracia (afinal, são tantos e tão desconhecidos), é de bom tom reafirmar que, para fins de compreensão jurídica, o equilíbrio de um Estado Constitucional Democrático de Direito se dá pelo respeito às regras do jogo, constituídas na Constituição (perdoem pela dolosa redundância). 

Qualquer comportamento fora do padrão, semeia bases para o arbítrio. E de arbítrio, já basta os tantos em nossa história.

Ainda tratando de clichês dos últimos tempos, as regras do jogo estão postas e as quatro linhas existem desde o memorável dia 05 de Outubro 1988. 

Deus sabe o quanto, em tempos passados, já foi jogado fora delas.

Mas, assim como no futebol, onde ninguém esperava que existisse a tecnologia do VAR e a possibilidade de revisão de jogadas duvidosas. No mundo do Direito, ninguém esperava que existissem redes sociais, YouTube e o compartilhamento de informações na velocidade de tirar o celular do bolso e realizar uma postagem no twitter e a possibilidade de amplo conhecimento, pela sociedade, dos feitos e mal feitos do Poder Judiciário, notadamente, da Suprema Corte.

É mais fácil o cidadão comum saber, nos dias atuais, a escalação dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal do que a sofrida escalação da seleção brasileira na Copa de 2022.

No desequilíbrio do exercício dos poderes, aqueles que deveriam fugir das veias abertas do mundo da política e manter-se em uma função técnica (e, por vezes, contramajoritária), se jogaram em um mar de sangue vivo fluente das veias e, não bastando, puxaram todos os holofotes para si, mostrando o quão protagonistas da carnificina podem ser.

E eis que os Reis, ao agir em distorção de suas funções, e como era de se esperar, ficaram nus. Ficando nus, reagiram de forma nunca antes vista na história da modernidade e da contemporaneidade.

A Juristocracia brasileira está posta. Muitos aplaudem por cinismo ideológico, sem entender que as vítimas, amanhã, podem ser eles mesmos. Afinal, no espírito do Leviatã jurisdicional “supremocrático”, o pau que bate em Chico, há de uma hora bater em Francisco.

Que não me tomem por negativo, mas rogo a Deus que o refrão “Pai, afasta de mim este cálice”, permaneça somente como uma memória dolorosa, tratada nas aulas de História, de tempos de censura e arbítrio que não se coadunam com as lutas para a conquista da Constituição cidadã. 


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Rodrigo Rabello é advogado e professor. Passou a ter coluna semanal no Jornal do Meio-Dia, da Campina FM, que vai ao ar semanalmente às quintas-feiras, no bloco das 13h.

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