Uma das grandes Graças que tive, na vida, foi o fato de ter sido criado por uma verdadeira Educadora.
Professora Maria Luíza Rabello, minha avó, me tomou nos braços desde tenra idade, logo após o falecimento precoce da minha mãe, e, com as dores e dissabores de, já em avançada idad, ver-se com a árdua missão de educar e formar Homem aquele menino-neto, em tempos que já se punham como de difícil compreensão, o fez com maestria e me preparou para o mundo e para a vida que me aguardava.
Como Educadora nata que era, desde cedo me estimulou ao hábito da leitura. Jamais por imposição. Mas por uma verdadeira arte da sedução literária que só os verdadeiros amantes das letras conseguem ter e, principalmente, transmitir.
Me recordo, vivamente, quando, ainda bem jovem, me deixava por algumas horas na Livraria Cultura, na Rua Getúlio Vargas, e me permitia que eu mesmo escolhesse os livros que gostaria de ler. Eram horas que me pareciam incontáveis, entre tantos e tantos livros naquela saudosa livraria, para que pudesse escolher aqueles que caberiam dentro do orçamento indicado e que poderia levar para casa e iniciar o caminho pelo mundo da imaginação.
Em uma das raras vezes em que ela me trouxe um livro, sem ser escolhido ou debatido comigo previamente, foi logo após uma viagem profissional que ela havia feito à cidade de São Paulo. Aos meus 11 anos, ávido pelos tradicionais “presentes” pós-viagem (típicos anseios infantis), recebi um exemplar de “Harry Potter e a Pedra Filosofal” (Sim, se você estava achando que eu diria que ela me daria, aos 11 anos, um exemplar de Ilíada e Odisséia, já seria esperar demais de um jovem pré-adolescente comum).
Apesar da rejeição inicial que tive pelo nome da obra (pedra filosofal? E eu lá queria saber de filosofia!), iniciei a leitura daquele livro inaugural de uma série literária que marcou minha pré-adolescência e adolescência.
Não estou aqui, por óbvio, para tratar de literatura infanto-juvenil, mas fiz este breve introito para lembrar da personagem “Voldemort”, o grande vilão das obras, que, dado o nível de sua maldade e dos males que fizera, lembrados ao longo da narrativa, era chamado de “você sabe quem” ou “aquele que não pode ser nomeado”.
Pois bem, hoje falaremos sobre “aquele que não pode ser nomeado” no atual estado de coisas inconstitucional em que a democracia brasileira respira por máquinas.
O “Você sabe quem”, você já deve deduzir, hoje exerce a função de Ministro do Supremo Tribunal Federal, frequentemente lembrado pelo aspecto fálico de seu crânio despido de cabelos.
Nosso inominável Jusimperador do Brasil, porta-bandeira da Juristocracia brasileira, reitor da subversão da Justiça.
O Inominável criador do inédito inquérito do fim do mundo (que muito me recorda a obra “o processo” de Kafka), aquele que, a despeito de inexistência de previsão legal e constitucional, foi chancelado pela corte Suprema e conduzido por aquele que se dizia vitima, alçando-se a condição natural de acusador e investigador e, ainda por cima, arvorando para si a condição de julgador e ai de quem questionasse, mesmo que em sede de 280 caracteres de um tweet, pois por antidemocrático seria tomado.
Iludido eu, achava que o espírito autocrata do referido findaria com a derrocada do Governo anterior. Mas, como bem diz o ditado: iludido é pior que doido!
Não bastando os inúmeros arroubos autoritários já praticados pelo dito cujo no presente ano, me surpreendo, na semana passada, com manifestação pública do Douto Iluministro, em evento organizado por grupo de empreendedores, defendendo a criação de alguma medida de exceção constitucional que pudesse ser invocada pelo Supremo Tribunal Federal, de ofício, quando entendessem que o “Estado Democrático de Direito” corria riscos.
Ora, aquilo que já sabíamos que existia naquela cabeça brilhante (não pela inteligência, mas pela ausência de cabelos), foi, finalmente, expresso em palavras. Os atos praticados já não bastam para a expressão de suas vontades de soberano.
Sentiu que ganhou espaço. Viu-se como um novo tipo de herói para um sem-número de acéfalos que aplaudem seus atos por puro identitarismo político-ideológico, sem saber o que lhes espera no dia de amanhã, caso as regras do jogo de conveniências, próprias do mundo da política, se modifiquem.
Medidas de exceção constitucional existem em todas as constituições modernas e são de responsabilidade de decretação por quem detém legitimidade popular para tal: o poder executivo, fiscalizado e limitado pelo poder legislativo. São estes poderes, com bons ou maus representantes, compostos por representação do povo.
A Constituição de 1988 está aí, há quase 35 anos em vigor, e, até hoje, não tivemos a Decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio. Afinal, além de possuírem hipóteses taxativamente previstas para decretação, envolvem um necessário diálogo institucional entre Poder Executivo e Poder Legislativo, bem como amplo controle de um sobre o outro.
Qual o interesse, portanto, de um Ministro suscitar um instrumento de exceção de competência de decretação pelo Supremo Tribunal Federal? Quando nunca foi necessária a decretação pelos Poderes legitimados para tal?
Ao Supremo compete a defesa intransigente da Constituição. Não lhes cabe criar novo texto constitucional ou emenda-lo, apesar de ser possível aplicação de nova interpretação. Não lhes cabe julgar com fundamento na voz do povo. Não lhes cabe arvorar-se de representatividade. Lhes cabe defender o que o povo, por seus representantes, entendeu ser a estrutura de Estado em que iriam viver e, caso necessário seja alguma mudança, a própria Constituição traz instrumentos para tanto (observando-se o detalhe que o Supremo não figura entre o seleto rol de legitimados à propositura de Proposta de Emenda à Constituição). Não precisamos de uma tecnocracia judicial ditando as regras do jogo.
Lembro ao ouvinte e leitor: os males de eleger um mau gestor são infinitamente menores do que os males de dar poder a quem deveria ficar dentro de limites irrestritamente estabelecidos. Do mau gestor, livramo-nos em quatro anos. Do iluministro? Só quando a bengala atingir.
Por derradeiro, faço uma emenda ao Renato Russo em “Índios”: “Quem me dera, ao menos uma vez, entender como um juiz ao mesmo tempo é Deus?”.
------
Rodrigo Rabello é professor, advogado e tem coluna semanal no Jornal do Meio-Dia da Campina FM
---
Para ler outros artigos do autor, clique AQUI