O experiente defensor Fábio Liberalino - Imagem: Reprodução - redes sociais |
A Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Paraíba manteve a condenação de uma mulher que participou do furto de canos de uma obra abandonada em João Pessoa no ano de 2020. Ela foi condenada a uma pena de três anos e seis meses de reclusão pela prática do crime do artigo 155, § 4º, IV do Código Penal (furto qualificado).
Segundo a acusação formulada pelo Ministério Público, a mulher, em conjunto com outras pessoas, no dia 10 de setembro de 2020 furtou oito canos, no valor total estimado de R$ 464. Dos homens envolvidos no furto, quatro no total, pelo menos um também foi condenado, mas não recorreu.
A defesa da mulher alegou que ela é uma pessoa em extrema pobreza e que a obra estava abandonada e pediu o reconhecimento do princípio da insignificância, dado o baixo valor dos produtos furtados, os quais, inclusive, foram recuperados no ato da prisão em flagrante, ocorrida após denúncias de vizinhos da obra.
A Justiça, no entanto, apontou que a condenada tem um histórico de delitos e conduta social reprovável. A Defensoria Pública recorreu da sentença de primeira instância, que foi mantida por unanimidade pela Câmara Criminal.
"SÓ MAIS OUTRO CASO DE ALGUÉM DETIDO POR TÃO POUCO"
Ao recorrer da condenação da mulher à pena de três anos e seis meses de reclusão, a Defensoria Pública apresentou uma contestação com forte carga crítica à imposição da sanção em primeira instância diante do que considera a vulnerabilidade da condenada ante a insignificância do produto do furto.
A peça é assinada pelo experiente defensor público Fábio Liberalino da Nóbrega e a estagiária Ana Carolina Costa Dias e configura-se uma denúncia firme e grave contra o desequilíbrio das decisões da Justiça, que condena pobres por muito pouco enquanto poderosos continuam impunes mesmo praticando crimes graves.
Na manifestação, o defensor afirma que “a conduta da Apelante merece ser analisada sob o prisma da extrema necessidade aliada as condições sociais e econômicas, consignando sua vulnerabilidade social por ser morador de área de extrema pobreza”.
“É só mais outro caso de alguém detido por tão pouco. Algo que escancara o quão graves são as questões conjunturais brasileiras. Imagine você ser julgado por um suposto furto de 08 canos de PVC ressecados, inservíveis e abandonados em uma construção esquecida pelo tempo. É tão desproporcional e bizarro você movimentar toda a máquina do sistema de justiça, todos os atores do sistema penal, para uma coisa tão irrelevante”, critica a defensoria, duramente.
VÍTIMA SEQUER SE PRONUNCIOU
A Defensoria também destaca na apelação a inércia da própria vítima, no caso, a construtora. “A vítima e/ou o seu representante legal não se preocupou em registrar o boletim de ocorrência devido a irrelevâncias dos bens da obra subtraídos. Não deu sua versão dos fatos em juízo. O laudo pericial de avaliação dos bens inexiste nos autos, consequentemente, não conseguiu auferir se resultou em prejuízo para a vítima, sendo certa que a obra se encontrava abandonada, sem nenhuma vigilância no local, o portão de frente se encontrava ABERTO sem nenhum “, pugnou.
“Verifica-se que todos os requisitos para aplicação do princípio da insignificância encontram-se presentes, já que os bens furtados foram de pequeno valor, a conduta foi praticada porque o imóvel estava em obras e completamente desprotegido, já que a porta de entrada ficava às escancaras, desprotegida à época dos fatos. Os fatos ocorreram sem gerarem riscos para os vizinhos, o crime não foi praticado com violência e ainda houve a restituição dos objetos”, continua.
PROCESSO É MAIS CARO QUE OS ITENS FURTADOS
Com a palavra, o defensor:
“Do ponto de vista objetivo, processos de casos com essas características não “se pagam. O delito que levou a pessoa à prisão e gerou um processo é tão irrisório na perspectiva monetária que sequer cobre as despesas da própria tramitação. Ou seja: representa prejuízo aos cofres públicos”.
“Além disso, torna-se mais uma ação a fazer volume no Judiciário e deixa a máquina morosa, colaborando para a demora de julgamentos de casos que, de fato, têm relevância jurídica e social”.
“Há ainda que considerar o tempo investido por servidores administrativos, policiais, escrivães, delegados, promotores de justiça, juízes, desembargadores e defensores públicos que atuam nesses casos e poderiam dedicar mais atenção e esforço a outros processos. Em suma: todos esses agentes teriam condições de dedicarem-se a ações que demandam aplicação do Direito Penal”.
EFEITOS DA CONDENAÇÃO DESPROPORCIONAL: A DESTRUIÇÃO DO CONDENADO
O defensor chega a se pronunciar em primeira pessoa. “Já participei de audiência de uma pessoa presa pelo furto de um passarinho. Imagine você inserir uma pessoa dessa no sistema penal, com todas as mazelas e problemas que o sistema tem?”.
Ele prossegue:
“Há muitos casos de dependentes químicos, principalmente de usuários de crack, que subtraem valores irrisórios para sustento do vício. E há também muitos casos de pessoas em situação de rua. Nós estamos diante de uma questão de vulnerabilidade. É um problema social, não de prender”.
“Além das consequências ao Judiciário, a existência desse tipo de processo deixa sequelas também nos acusados dos crimes, que recebem punições desproporcionais ao delito cometido e, muitas vezes, têm as vidas totalmente desestruturadas”.
“Geralmente, os presos por insignificância penal são pessoas em situação de vulnerabilidade. E vulnerabilidade em tudo. Se ela já está nessa situação e tem um processo contra si, vai ser fácil encontrar emprego? O convívio com amigos e familiares vai acontecer? Não vai”.
“Ela vai conviver com a pecha do crime. É uma tragédia a vida da pessoa que sofre um processo. Mesmo solta, ela é apontada na rua. Os olhares continuam. A fama fica. A gente não tem como mensurar isso. E o tempo que a pessoa fica na prisão será que não é necessário pra ela ser cooptada por uma facção? Será que não vai colocar no ser dela a questão da injustiça?”.
“Nem sempre se tem a percepção adequada do que a insignificância penal representa. A insignificância diz respeito à lesão aplicada e não ao histórico da pessoa. Não é uma questão subjetiva; é uma questão objetiva”.
“É preciso pensar que o tanto que o Estado gasta pra punir a pessoa ou mesmo só pra processá-la é enorme. Porque toda a máquina judiciária atua. Toda a máquina paga por algo irrisório. E isso desvia recursos que poderiam ser aplicados em casos mais graves”.
Ainda cabe recurso da decisão.