Se fosse hoje, as coisas não teriam acontecido daquela forma, porque, após 12 anos, o cenário do sistema prisional paraibano é outro. Mas graças à ‘palavra’ do preso, a minha vida – hoje – não está tão ruim. Hoje – acredite – eu poderia estar vivendo sequelas de um inferno particular (se estivesse vivo, é bom frisar).
Àquela época, eu era um dos poucos agentes penitenciários que não fazia questão de exercer serviços administrativo-burocráticos. Deixar, temporariamente, a função apelidada de ‘operacional’ para mexer com papeis, carimbos e máquinas de xerox era algo desolador para quem não tinha isso em mente, mas a razoável habilidade com a escrita me ajudou nessa empreitada.
E cá pra nós: todo conhecimento é algo bom. Tem muita coisa da cadeia que só são perceptíveis a quem se habilita a fuçar papeladas. Enxergando por esse ângulo, o tal setor administrativo me revelou muita coisa interessante.
Para a minha alegria (ao menos naquele tempo), eu exercia uma função mista. Quando não estava escrevendo ofícios para a Direção do Presídio, somava-se à equipe minguada (à época) de agentes prisionais que percorriam os nove pavilhões da penitenciária, todo santo dia, para fazer a contagem dos presos. Um a um. Era uma forma de sair um pouco do ar condicionado.
Noutras vezes, também por escassez de efetivo, eu compunha as equipes de escoltas de presos para o fórum, hospitais ou qualquer outro destino cabuloso, respirando, mais uma vez, outros ares que não fossem tão somente o daquela sala aparentemente sem graça. Mas foi numa dessas saídas que, filosoficamente falando, eu decidi apostar na “palavra de honra” de um apenado cujo histórico recomendava todo cuidado possível.
O histórico
Estamos falando de um criminoso que tinha certo poder de influência no bairro do Jeremias e, por muito tempo, no próprio presídio Serrotão. A mãe desse apenado faleceu justamente naquela tarde de pouco efetivo policial no presídio, e sobrou para o ‘agente administrativo’ mais uma missão além-muros. Quem me deu a ordem disfarçada de ‘convite’ foi o diretor adjunto à época.
- Saulo, quebra um galho aí pra gente...
- Lá vem... O que é?
- Escolta pra velório.
- Vixeeee... Quem é o preso?
- Toin Doido
- C@r***, Toin Doido? E vão quantos agentes nessa escolta?
- Você e mais dois.
- Peraí, mestre, só três?
- É o jeito, a outra equipe tá no Fórum. E a gente tem que levar, fazer o quê?
Enquanto eu resmungava palavras de baixo calão impróprias para o texto, me vinham à mente algumas histórias atribuídas ao detento: “estuprava irmãs de presos como pagamento de dívidas”; “comandava com mão de ferro aqui nos pavilhões”; “era cruel e temido no Jeremias”. Se ele fazia isso tudo mesmo, eu não sei. Quando trabalhei no presídio Serrotão (2012 a 2015), aquele preso já estava ali há alguns anos e não tinha mais poder de comando sobre a massa carcerária.
A escolta
Por força da lei, saímos com o apenado rumo à residência da sua mãe falecida, em um dos bairros mais violentos da cidade naquele período. A rua era tão estreita que a viatura do presídio teve de entrar de marcha à ré, para sairmos de frente – e de forma mais rápida, em uma eventual necessidade.
De longe, vimos uma aglomeração de pessoas em frente à casa onde o corpo estava sendo velado. De crianças a idosos, todos estavam ali para ver duas ‘atrações’: o caixão transversal na sala daquela pequena residência e a chegada de um dos homens mais violentos da comunidade. Quem já fez esse tipo de escolta sabe como muitos detentos são recebidos pelos amigos, em seu habitat natural.
As inquietações inevitáveis
Imagine-se você, leitor(a), com um revólver na mão, sem colete balístico, rodeado de crianças, mulheres, idosos, espremendo-se para entrar numa sala lotada de pessoas e responsável pela segurança [?] sua, do preso e de seus colegas. Aquilo era lugar de efetuar algum disparo de arma de fogo?
Para aonde eu olhasse, recebia de volta olhares nada amistosos. Eu, ali, não passava de um “pau mandado do sistema opressor que maltrata presos diariamente e os familiares destes, em dias de visita”. Sozinho [na sala], com um revólver, tentando disfarçar o indisfarçável.
Lá fora, na calçada, um dos colegas segurava uma espingarda calibre 12. A ideia – só no mundo ideal mesmo – era mostrar que estávamos ali para o que desse e viesse. O terceiro e último componente da escolta estava dentro da viatura, com o carro ligado.
O pedido
Como diz o ditado, “nada é tão ruim que não possa piorar”. Em determinado momento, Toin Doido, que já estava em meio a seus familiares lamentando o óbito de sua genitora, olha pra mim e caminha em minha direção.
- Seu agente, me faça um favor...
- Fala, Toin.
- Tira as algemas aí.
Fitei os olhos naquele homem negro, de porte físico mais atlético que o meu, e não ousei levar a mão ao revólver. Poderia ser um desastre. Digo sem medo de errar que ali, naqueles 30 metros de circunferência da casa, não havia menos de cinco armas na cintura dos amigos do preso. E se aqui, lendo essa história, você tem todo o tempo do mundo para dizer qual atitude tomaria, não era o meu caso.
- Vai vacilar é, Toin? – retruquei, de braços cruzados.
- Vou não, homi de Deus. Só quero abraçar meu povo. Lhe dou minha palavra.
Passei mais alguns segundos olhando nos olhos do preso. Depois, peguei as chaves e tirei as algemas do apenado. Pra mim, eu e meus colegas já estávamos ‘rendidos’. Se o presidiário quisesse fugir, o faria com ou sem algemas. Aliás, o próprio detento sabia disso muito mais do que eu. Como diz a canção, “O que é um arranhão pra quem já tá fud...?”
E assim sendo, eu preferi remar a favor da maré.
- Cinco minutos! Abrace seu povo e vamos embora – ‘ordenei’.
- Sim senhor.
Meus dois colegas de escolta nem sonhavam o que estava acontecendo naquela sala entupida de gente. Cada um no seu posto de observação e, com certeza, ávidos para sairmos logo dali, eles não ‘vivenciaram’ aqueles cinco minutos de quase plena liberdade de um dos homens mais ‘poderosos’ do Jeremias.
Foram cinco minutos bem demorados. Mas quando o tempo acabou, eu acenei para Toin e fiz gestos de irmos embora. Ele abraçou mais uma vez cada um dos seus entes e me veio com as mãos erguias, juntas e de punhos fechados.
- Num lhe falei? Pode botar as algemas.
A morte
Saímos com o preso de volta ao presídio. Tudo tranquilo (ou menos problemático?), sem efeitos colaterais mais graves (não sei se psiquiatras irão concordar com essa parte). Passaram-se alguns meses, e Toin Doido foi beneficiado com progressão de regime, passando a cumprir pena na Casa de Albergue do Monte Santo (sair durante o dia e retornar à noite).
Exatos dois dias após ele estar no novo regime de pena, Toin foi assassinado com dez tiros, em frente à porta do Albergue, quando saía para passar o dia em liberdade.
“Palavra de honra”
Existe uma quase lenda no sistema prisional, segundo a qual a ‘palavra do preso’ é [quase] sempre confiável. Eu mesmo já ouvi muitas vezes alguém – presos e agentes – dizerem que “se o preso promete, ele cumpre”. Claro que tem pouco (muito!) de romantismo nessa história.
Mas pelo menos naquele dia, Toin Doido cumpriu com sua palavra, o que não significa, necessariamente, que ele repetiria essa honestidade outras vezes. Cada dia é um dia; cada caso é um caso.
Após 12 anos, fico pensando o que seria de mim, profissionalmente falando, se aquele prisioneiro tivesse fugido sem algemas que eu mesmo ‘decidi’ por tirá-las:
- “Agente penitenciário tira as algemas de preso, e ele foge”
- “Preso foge após agente penitenciário retirar algemas do detento, em velório”
- “Durante escolta, agente penitenciário tira algemas de preso e ele acaba fugindo”
- “Tiroteio mata duas crianças, após agente penitenciário retirar algemas de preso”
- “Mulher morre em troca de tiros após agente penitenciário retirar algemas de preso”
- “Agente penitenciário reage a ação de preso e mata duas crianças durante velório”
Se fosse hoje, as coisas não teriam acontecido daquela forma, porque, após 12 anos, o cenário do sistema prisional paraibano é outro. Mas graças à ‘palavra’ do preso, a minha vida – hoje – não está tão ruim. Hoje – acredite – eu poderia estar vivendo sequelas de um inferno particular.
Se eu mesmo já não tivesse me matado.
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Saulo Nunes é jornalista, policial civil, escritor e ex-agente penitenciário