“Aliciamento violento de eleitores” é eufemismo para MILÍCIA! E antigo... - Saulo Nunes


É impressionante o quanto algumas situações atuais me levam para dentro da então Casa de Detenção do Monte Santo, em Campina Grande, nos idos de 2009-2010. As últimas semanas na Paraíba têm me forçado a resgatar na memória algumas cenas que vi, vivi, ouvi e – hoje – compartilho com o leitor como numa conversa franca que se tem na sala de um psicólogo ou psiquiatra. Aliás, o título deste artigo bem que poderia ser “Esquizofrenia Policial”, já que tem tudo a ver com a ‘manchete’ escolhida.

Lembro-me bem quando, talvez no terceiro ou quarto mês de nomeado agente penitenciário, estava convicto de que meus esforços fariam a diferença no “combate ao crime”. Eu e outros colegas recém-chegados àquele presídio estávamos com a adrenalina às alturas. Roupa preta, cara de mau e... muita inocência envolvida. 

Certo dia, numa ‘revista’ nas celas, eu fuçava o recinto do preso como um cão de caça numa toca de tatu. Era questão de honra, vocação, “sangue na veia”. Eu não sabia, mas isso feria duramente uma espécie de “cultura” (eufemismo para ACORDO) que existia na vida real dos presídios, – relatado, para quem quiser ver, na CPI do Sistema Carcerário –, e punha em risco a minha segurança e a de meus colegas.

Um deles, vacinado com a experiência de 20 anos de serviço à época, foi fraternalmente gentil comigo. 

“Irmão, não faz isso, vai por mim. Pelo menos ainda não. Não sei algum dia, quem sabe, mas hoje não vale a pena. Ninguém lá fora não tá nem aí pra isso. E quando o bicho pegar aqui dentro, vai ser só nós mesmo”. Foi mais ou menos esse o recado. 

FIM DE NÚPCIAS 

E em vez de acreditar no companheiro de trabalho, eu ainda relutei algum tempo. Achava que aquele ‘antigão’ tinha mesmo era esquema com os presos e queria aliviar a barra dos detentos. Os anos foram passando, e a convicção de que aquele colega estava correto chegou. Dali para frente, a noiva feliz em uma noite de núpcias se viu traída pelo cenário real da vida que escolhera.

Sim, claro que após 15 anos, caminhando no ainda duvidoso labirinto da segurança/violência, estou tão vacinado – ou mais – quanto aquele meu amigo conselheiro do Monte Santo em 2009-2010. Ainda no próprio presídio, a convivência ‘amigável’ com os presos me rendia tardes inteiras de conversas reveladoras, regadas a suco de laranja e pão com carne, lanche feito pelos próprios detentos. 

Enfim, nada mais me soa como novidade. Nem mesmo as denúncias feitas pela Polícia Federal na Paraíba, de que traficantes – presos em regime fechado – decidem quem pode ou não pode fazer campanhas eleitorais em determinadas comunidades do estado e do Brasil. Enquanto a maioria da população escuta isso boquiaberta hoje, eu degustava essas histórias com sanduíche carcerário láaaaaa atrás... 

É certo que, nesses 15 anos, essas negociatas extrapolaram os limites. O crime organizado evoluiu bastante, justamente porque os gestores públicos de outrora achavam que a ‘brincadeirinha’ com os criminosos não passaria daquilo. Hoje, comprova-se, até os políticos profissionais podem perder o espaço por completo numa comunidade dominada pelo tráfico, para a eleição de um ‘cria’ do lugar (indicado, claro, pelo narcotráfico).  

O nome é MILÍCIA!

No Rio de Janeiro, onde essa parceria “política & traficante” existe há muito mais tempo e só foi disseminada após a exibição dos filmes Tropa de Elite, o nome disso é MILÍCIA. 

E se o resto do Brasil bobear (incluindo a Paraíba), daqui a quatro anos outras ‘Marielles’ morrerão assassinadas; traficantes exibirão fuzis em esquinas de favelas; polícias não terão mais acesso [pacífico] em bairros inteiros; e até o SAMU vai ter dificuldades de socorrer alguém enfartando.

Quer mais? Então anota aí: cenários como esse são terrenos férteis para esquizofrenia policial. 

----

Saulo Nunes é jornalista, escritor e policial civil

Postagem Anterior Próxima Postagem